Eduardo Bueno se encontrou diversas vezes com Bob Dylan, desde Porto Alegre até Budapeste, e o hoje protagonista do quadro 'É Muita História' do Fantástico é um dos poucos no Brasil que podem falar o que pensam sobre Bob Dylan. O cantor e compositor que foi indicado até para o Nobel de Literatura (mas não ganhou), em 2001 assustou o mundo pois alguns jornais afirmaram que ele estaria morto. Naquela ocasião, Eduardo Bueno fez um dos melhores textos sobre Bob Dylan, que transcreverei na íntegra aqui no Barco Bêbado:
AOS 60, BOB DYLAN VAI VIVER DE NOVO
Morto tantas vezes, o homem que dividiu a música em duas ganha homenagens-obituário; está na hora de renascer outra vez
Quarenta anos depois de ter composto sua primeira canção, o que resta para Bob Dylan fazer? Só lhe resta morrer. Bob Dylan já fez tudo o que se poderia esperar dele - e de qualquer artista de seu século. A morte talvez deixe claro - enfim e de uma vez por todas - que Bob Dylan foi o sujeito que fez pela música popular o mesmo que Darwin pela biologia, Einstein pela física, Freud pela psiquiatria. Ele é um divisor de águas, o turning point, um marco, do tipo a.D e d.D (antes de Dylan e depois de Dylan - embora o segundo tempo ainda não tenha se iniciado).
Mas, na verdade, nem a mais radical das possibilidades se apresenta como uma opção viável para Bob Dylan. Primeiro, porque se trata de um sobrevivente nato. Segundo, porque não seria novidade alguma: Bob Dylan já morreu. Várias vezes.
Morreu como cantor folk ''de protesto'' em 1965. Renasceu no mesmo ano como o roqueiro radical de óculos indevassáveis e letras também. Morreu como pop star - depois de um acidente de moto, em 1966 (no dia 17 de julho, se isso significa alguma coisa). Ressurgiu dois anos depois como o novo pai da country music. Morreu como lenda em 1974, voltando à estrada depois de sete anos de retiro rural (e 8 milhões de americanos tentaram comprar ingresso para sua turnê com The Band, registrada no álbum duplo Before the flood). Renasceu como ''lenda viva'' em 1975, com os discos Blood on the tracks e Desire - seus dois maiores sucessos de público até hoje. Morreu como judeu em outubro de 1979.
Renasceu como cristão fundamentalista (no dia 11 de novembro de 1979, quando Jesus Cristo ''apareceu'', ao vivo e a cores, para ele, num quarto de motel de beira de estrada). Morreu como pastor de um rebanho disperso em 1983. Renasceu logo a seguir como homem que continua fugindo da própria sombra e jura por Deus (sabe-se lá qual) que nem lembra da época em que foi cristão.
Por fim, mas com certeza não por último, Bob Dylan morreu, ou quase, em 29 de maio de 1997 - quando um fungo penetrou nos seus pulmões, inchou-lhe o coração e o levou para o hospital, do qual ele achou que só sairia para ''encontrar com Elvis mais cedo que o previsto''. Dylan então renasceu outra vez, lançando o disco que muitos críticos consideraram o melhor daquele ano: Time out of mind - um álbum espectral, premonitório, hipnótico; repleto de sobretons, palavras ásperas e visões fantasmagóricas - e que ele havia gravado antes da doença.
Ao acordar, na quarta-feira passada, 24, Bob Dylan deve ter achado que morrera de novo. Jornais e revistas do mundo inteiro publicaram uma míriade de artigos, entrevistas, fotos e ensaios - você deve ter visto alguns. Por mais devotos, reflexivos ou laudatórios, soavam todos como uma espécie de obituário. Para um sujeito ultra-sensível como ele - interessado em construir a própria lenda sem a ajuda de terceiros -, aqueles textos (alguns esplendorosos, como o de Bono, do U2, e o de Bill Wyman, ex-baixista dos Rolling Stones; outros tolos ou inúteis) talvez tenham sido a pá de cal nos oito ou nove Dylans cuja trajetória ele forjou ao longo de 40 anos de carreira.
A dissecação pública desses nove ou dez Dylans deu-se a propósito dos 60 anos de nascimento de Robert Allen Zimmerman - que veio ao mundo a 24 de maio de 1941, em Hibbing, nos cafundós gelados de Minnesota, no norte dos EUA. De algum modo, porém, Bob Dylan não parece diretamente ligado àquele evento (o de 1941). Muito menos a esse de agora.
Afinal, como todo mundo está cansado de saber, Bob Dylan inventou a si mesmo - desde o rascunho. Evidentemente, não foi o primeiro a ter-se inventado. Mas foi o primeiro a inventar Bob Dylan. Ninguém o inventou melhor antes, nem depois - embora muitos tenham tentado. Neil Young, Roger McGuinn, Bruce Springsteen, Leonard Cohen, Tom Waits, Jim Morrison, Lou Reed, Kurt Cobain, Beck bem que se esforçaram. A inúmeros outros restou apenas rolar como as pedras que rolam à beira do caminho.
Bob Dylan fundiu música e poesia como os beats tinham tentado, mas jamais conseguiram. Bob Dylan cantou a si próprio e ao seu país, como Walt Whitman sugeriu e fez. Pescou a baleia branca e flertou com o negro corvo, navegando com Melville, enlouquecendo com Poe. Dylan deu cor às vogais e regulou o movimentos das consoantes, conforme a cartilha de Rimbaud. Botou a viga pra cima, moçada. Perguntou ao pó e meteu o pé na estrada - e na jaca, e na cova. Bob Dylan também sonhou que era um profeta do Velho Testamento - e acabou pregando no deserto. Bob Dylan encheu a garganta de trovões - quase foi fulminado por eles. Bob Dylan sempre fingiu que é dor a dor que deveras sente.
Elvis liberou o corpo, Dylan liberou a mente. Não foi Dylan quem inventou o rock - ele apenas lhe deu um cérebro. Quando os Beatles e os Stones viraram doidões - with a little help from their friend Bob, aliás -, Dylan foi criar filhos e galinhas, ao lado do celeiro, em Woodstock. Enquanto os Beatles estavam querendo pegar na mão de alguma garota, Dylan já estava saindo do quarto dela, levando os cobertores (e agora?), deixando-a com suas pílulas, sua anfetamina e sua dor, como se ela já fosse mulher feita. Youre a big girl now, baby blue. Enquanto os Rolling Stones estavam flertando com o diabo, numa macumba para turista, Dylan (o demiurgo, o exorcista) estava tentando conjurar demônios interiores - os dele e os nossos.
Quando Jimi Hendrix eletrificou All along the watchtower ao limite do tolerável - e tornou-se um deus - Dylan tocava no porão, sozinho ao violão, como se fosse Robert Johnson. Enquanto o Prodigy inventava o techno, Dylan gravava canções de pretos anônimos dos anos 40, enterrados em covas rasas às margens do Mississippi. Enquanto seu filho, o bonitão Jakob, arrancava suspiros das mocinhas, vestindo um Armani, o velho Bob, de camisolão, suspirava de dor numa cama de hospital. Mas, pouco depois, na mesma noite em que Bob filho levava um Grammy para casa, Bob pai embolsava três. Quando todos os outros estavam indo (enriquecendo, ou sumindo, ou morrendo de pico ou de bala), Bob Dylan estava voltando - embora isso eventualmente o tenha feito andar em círculos.
Bob Dylan sempre foi um sujeito com um violão e um ponto de vista. Ou com uma guitarra e um ponto de vista. Ou com uma banda (a única boa o suficiente para se chamar, simplesmente, The Band) e um novo ponto de vista. Ou uma big band (em 1978, Dylan juntou 17 músicos e pegou a estrada, com todas suas grandes canções com arranjos à Las Vegas) e um outro ponto de vista. Ou, quem sabe, com um violão, uma Bíblia e o seu particularíssimo ponto de vista. Ou ainda com um violão, uma harmônica, uma jaqueta de couro - e, é claro, um ponto de vista estranho, indecifrável mesmo.
Os pontos de vista de Bob Dylan acabaram se tornando um mapa - tortuoso e áspero, labiríntico e eventualmente sem saída, mas, ainda assim, um mapa - para toda a história da música e da cultura pop. Um roteiro sem porto seguro para uma, duas, talvez três gerações. A trilha - não apenas sonora - que ele abriu, e ao longo da qual percorreu todas as estações, manteve seus seguidores permanentemente à beira do abismo. Bob Dylan queimou todas as pontes que o levaram até onde está. And he didnt look back: não tem vocação para virar estátua de sal. Bob Dylan entrou em todas e deu um jeito de sair delas. Esteve em muitas, não ficou em nenhuma. Bob Dylan não está nem aí.
Mas talvez também não esteja mais lá. Vai ver que Bob Dylan já não sabe quem Bob Dylan é. Nem ele nem ninguém.
Depois de 72 discos, 41 biografias e 15 anos de uma paixão obsessiva, resvalando no ridículo, conheci Bob Dylan. Foi em São Paulo, em janeiro de 1990, quando ele veio para o Hollywood Rock. Desde então, encontrei-o várias vezes - em Los Angeles, em Budapeste, em Buenos Aires, em Nova York, em Porto Alegre, em Zagreb, em Bolonha, em Belo Horizonte.
Essa semana, meu telefone ficou rouco de tanto tocar. Gente de todo o tipo disposta a obter de mim informações que Dylan luta para manter recônditas há décadas. Eu não tinha resposta para a maioria das perguntas e, se tivesse, não as daria: o que quer que pudesse dizer com certeza soaria como um vento idiota. The answer, my friend, is blowin in the idiot wind, você sabe.
De todo modo, embora sempre tenha sido uma honra conviver com Dylan, nem sempre foi o máximo. Se a humanidade funciona em AM, suspeito que ele só pegue em FM. Se Van Gogh cortou a orelha ao ser contrariado, Dylan corta a língua - de quem falou. E só com o olho. Se os humores de João Gilberto eventualmente se assemelham aos da Bruxa Má, comparado a Dylan ele é a Branca de Neve. Pobre Bob Dylan: ninguém o ama, ninguém o quer, mas todos os chamam de Baudelaire. Dylan responde à altura e se comporta como o próprio.
Mas esse é apenas um dos muitos Dylans. Já deparei com outros mais potáveis: um deles era tão suave e gentil que parecia ter acabado de compor Love minus zero: No limit. Certa vez, numa varanda no Buda Penta Hotel, de frente para o Danúbio, em Buspaste, Dylan revelava um olhar tão inspiradoramente melancólico que era como se o próprio rio estivesse murmurando a melodia de Buckets of rain. Na maior parte das vezes, o que vi foi um sujeito metade quadro de Braque metade peça de Cocteau, que, mesmo parado, se move em velocidade vertiginosa - livrando-se não apenas dos seis ou sete Dylans que vieram antes, mas deixando para trás também as sombras deles todos - enquanto sua imagem permanece silhuetada em nossas mentes, com um estrondo, com um suspiro.
No dia 24 de maio de 2001, depois de ler seus muitos obituários, Bob Dylan deve ter concluído que está mais vivo do que nunca. Hora de virar a página, de novo.
Eduardo Bueno (27 de maio de 2001)
Eduardo Bueno é jornalista e escritor, autor de Capitães do Brasil e Náufragos, traficantes e degradados
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Post Scriptum: Só não venham me dizer que Bob Dylan é melhor que Donovan.. no máximo empata :p